sexta-feira, 6 de maio de 2016

Caraíva e Trancoso

Sul da Bahia

Em nossas últimas férias decidimos ir para o Sul da Bahia.
Os destinos escolhidos foram Caraíva, um lugar mais rústico e menos conhecido, e Trancoso, mais turístico e conhecido.

Viajamos no final de abril que é considerado baixa temporada. A vantagem é que as praias estão incrivelmente vazias e há melhor negociação de preços (bugs, barcos, etc). A desvantagem é se deparar com alguns restaurantes e atrações fechadas, o que para quem gosta de agito pode ser uma frustração (o que não foi o meu caso! rs).

Nessa época também o calor não é insuportável e pode chover. Não pegamos nenhum dia de chuva, muita sorte mesmo! Escurece por volta das 17h30- 18h00, portanto se quiser aproveitar, tem que ser no esquema dormir e acordar cedo.

Em nossas viagens, sempre tentamos mesclar lugares e tentar desbravar ao máximo tudo o que há de interessante naquela região.
A primeira parada foi em Caraíva, uma vila super peculiar, onde não entra carro, não há asfalto nem calçada. Para andar, pé na areia mesmo!  O clima é hippie-chique, ao som de MPB, bossa-nova, surf-music. 

Eu particularmente achei um pedaço do paraíso. Ficamos lá 4 dias e depois partimos para ficar mais 3 em Trancoso, um rústico-sofisticado também encantador.  Realmente fomos muito felizes na escolha.

CARAÍVA

Como chegamos: pegamos um vôo até Porto Seguro e depois um táxi até Caraíva (2,5 horas) que nos deixou na beira do Rio Caraíva. Depois atravessamos de canoa (isso mesmo, canoa, por isso não exagere na mala). Apesar de a vila ser pequena, quando a pousada é distante do rio, é necessário contar com a ajuda de mulas e cavalos, que por R$ 20,00 levam toda a bagagem até o local de hospedagem. Não foi o nosso caso, pois a pousada ficava a 5 minutos a pé do rio.

Indicações de taxi:  usamos e aprovamos os dois, muito simpáticos e honestos
Jonguinha: 73- 99636193
Nandi: 73- 99920281
Valores: Porto Seguro->Caraíva: R$ 270 // Caraíva->Trancoso: R$ 200 // Trancoso->Porto Seguro: R$ 180,00

Onde ficamos:  há vários opções, das mais simples, as mais arrumadinhas. Nós ficamos na Pousada Casinhas da Bahia, uma ótima relação custo X benefício . Lembrando que apesar de o lugar ser rústico, os valores não são baixos e isso também vale para os restaurantes.

Vista o rio Caraíva

Igrejinha de Caraíva

Dia 1

Dia/Tarde: ficamos no restaurante Coco Brasil, que possui espreguiçadeiras e quiosques de frente para o mar, com música e comida boas. Não tem taxa de cadeira, só paga o que consumir. Lá comemos um delicioso penne com peixe e trio de brigadeiro.

Noite: comemos pizza no Bar do Porto, a luz de velas, com delicioso som ao vivo de voz, violão e percussão. Tentamos esperar até meia-noite o início do forró do Pelé (que se alterna com o forró Ouriço), mas o cansaço nos levou de volta para a pousada.

Trio de brigadeiros do Coco Brasil

Dia 2

Dia/Tarde: fomos para a famosa praia do Espelho, que apesar de linda, perdeu para Corumbau que fomos no dia seguinte
Fechamos com o pescador Titi para nos levar até lá de barco por R$ 300 o dia todo. Há a opção de ir a pé, mas é uma caminhada bem longa sob o sol, então preferimos não arriscar. No caminho ele parou no recife de Tatuaçu onde tem corais e peixinhos e depois da praia do Satu, linda, completamente deserta e com uma lagoa de água doce para se refrescar.
Chegando no espelho, vimos alguns restaurantes com boa estrutura mas com preços bem salgados. Uma refeição para 2 pessoas não sai por menos de R$ 150,00.
Almoçamos um bobó de camarão no restaurante/pousada Bendito Seja. Adoramos!
Chegamos de volta já com um fominha e comemos um pastelzinho de arraia no Boteco do Pará.

Lagoa da Praia do Satu

Restaurante da Pousada Bendito Seja


Noite: Demos uma volta pela vila e comemos um ceviche no bistrô Comida do Mundo. Apesar de gostoso, era pequeno e caro. Então fizemos um complemento com um lanche delicioso no restaurante/ cachaçaria Caraíva, um dos mais movimentados da beira do rio.


Dia 3

Dia/Tarde: fomos na praia de Corumbau, que surpreendeu pela sua beleza. É uma praia deserta bem extensa, com um braço de terra que avança o mar. Na maré baixa, você consegue andar sobre essa `ponta`, o visual é de tirar o fôlego.
Alugamos um bugue por R$ 180 , para o bugueiro nos levar de pois ir buscar. No trajeto, de aproximadamente 30 minutos, atravessa-se uma reserva indígena onde a vegetação de restinga dá um visual mais árido, o que rende belas fotos.
Chegando no rio Corumbau, é necessário atravessar de canoa (R$ 10/pessoa). Mais 10 minutos de caminhada pela praia e chega-se na área turística da praia, onde existem meia dúzia de restaurantes com suas respectivas barracas.
Sinceramente, foi uma das praias mais bonitas que conheci na vida e ainda sem ondas, o que adoro. Como chegamos cedo, era aquele piscinão azul só para nós, surreal!
Passamos o dia lá, ficamos no bangalô e comemos no restaurante Panela de Barro, uma comida caseira fresca e deliciosa, com preço bem melhor do que Caraíva.
Ficamos lá até umas 15h, quando encontramos o nosso bugue do outro lado do rio. O bugueiro João, um índio pataxó muito simpático nos levou para a zona onde os índios vivem hoje em dia, explicou como funciona a vila e mostrou até a casa dele. Engana-se quem acha que ainda existem ocas. O governo construiu casas populares que abrigam os índios remanescentes.

Caminho para a praia de Corumbau

Praia de Corumbau: calma e azul


Noite: Fomos num suposto forró que estava acontecendo no bar Pisa no Fulô, mas não houve público... baixa temporada tem dessas! Então vimos a lua cheia maravilhosa em frente ao mar e depois comemos um lanche de mignon (essas alturas já estávamos em crise de abstinência, de tanto comer peixe, rsrs) no restaurante Aquarius, bem gostoso!


Dia 4

Dia/Tarde: fizemos a tão famosa descida de boiacross pelo rio Caraíva. O horário bom de descida depende muito da maré, então nos informamos um dia antes. Pagamos R$ 50/pessoa para o Titi (o mesmo da praia do Espelho) nos levar até a prainha, lugar de onde geralmente começa o passeio. Nesse valor também estava incluso o acompanhamento de lancha durante o percurso, pois quando a correnteza não está forte, o passeio chega a durar até 4 horas. Então em alguns momentos ele amarra a corda na boia e puxa de lancha, o que também é divertido.
O passeio durou 1 hora e então fomos para a ponta da praia, onde o mar encontra o rio e ficamos lá curtindo a paisagem. Lá é a zona mais turística de Caraíva, onde há cadeiras, tendas e alguns quiosques vendendo bebida e porções. De lá fomos para a Coco Brasil, onde comemos camarão empanado.

                                                                                       Descida pelo rio de boia

Noite: fizemos um almojanta na casa do meu primo que mora lá há 10 anos. Ele é dono do restaurante Mangaba, conhecido por sua moqueca. Como o restaurante estava fechado (só abre nos meses de alta temporada), fomos honrados com a moqueca feita para nós na casa dele. Espetacular!!!

                                                                              Moqueca do restaurante Mangaba

TRANCOSO

Como chegamos: táxi
Onde ficamos: Hotel Pousada Mar à Vista.
Maravilhoso, ótimo custo X benefício, vista sensacional para o mar, localizada no famoso Quadrado.

Os preços em Trancoso são ainda mais altos que Caraíva. É um lugar elitizado, então isso se reflete em todos os serviços e produtos. Mas apesar disso, achamos que valeu muito a pena conhecer.

Dia 5

Dia/Tarde: conhecemos o território, demos uma volta no Quadrado (campo de grama, em frente à famosa igreja, com vários restaurantes em sua volta) e depois..... praia!
Tínhamos lido que a praia dos Coqueiros era mais popular e a dos Nativos mais vip. Sinceramente, como fomos em baixa temporada os dois lados da praia estavam muito parecidos. Gostamos da barraca da Silvana na praia dos Coqueiros e por lá ficamos. Comemos um ceviche delicioso.  

Vista do Mirante do Quadrado


                                      
                                                                        A quarta igreja mais antiga do Brasil

Noite:  De manhã já havíamos reservado mesa no famoso restaurante Capim Santo. O ambiente é maravilhoso e a comida divina, mas o preço também acompanha. Vale ir 1 noite para conhecer!


Talharim com ragu de linguiça 


Dia 6

Dia/Tarde: pegamos uma van de moradores (R$ 7) e fomos até Arraial D’Ajuda, num trajeto que durou cerca de 1 hora.
Apesar de dizerem que a praia de Pitinga é a mais bonita, ficamos na praia central, a Mucugê. De novo, em baixa temporada tudo fica mais calmo, sem muvuca e as praias bem limpas.
Escolhemos ficar na barraca La Plage, que tinha bangalôs confortáveis, DJ, banheiro limpo e não estava cobrando consumação. Comemos tapioca.
Subimos para o centro de mototaxi  e almoçamos no restaurante Portinha, um por kilo gostoso, na rua central, a Mucugê. Infelizmente não conhecemos a rua à noite, pois de dia a maioria dos restaurantes estavam fechados.
Passeamos pelo centro histórico e retornamos de van para Trancoso.
Ps.: a van só é recomendada se você não se importar em fazer um trajeto nada turístico. O transporte é utilizado por trabalhadores da região , vai bem cheio e fazendo várias paradas. Para nós valeu a economia, pois um taxi nos cobraria umas R$ 200 ida/volta, no mínimo.

                                       
                                                                        Vista do Mirante de Arraial D`Ajuda

Noite:  Andamos novamente pelo quadrado e comemos um lanche gourmet no conceituado restaurante Ushua. Achei caro!

Dia 7

Dia/Tarde: fomos novamente à barraca da Silvana, mas desta vez comemos o prato da casa, o peixe na Brasa. No meio da tarde, subimos a ladeira de mototaxi e curtimos a piscina do hotel.

Peixe na brasa 


Noite:  Demos novamente a voltinha no Quadrado, mas por indicação da Patricia, dona da pousada, fomos no shushi Aki, delicioso e com preço bem mais justo do que os restaurantes do circuito Quadrado. Acabamos a noite com um forró pé de serra que acontece toda sexta-feira no Café Cultura, próximo à igrejinha.

De volta para casa, ficamos com um gostinho de quero mais, com certeza essa é uma região que ficará em nossa lista para uma sessão remember no futuro.


Espero que tenha ajudado quem planeja ir para lá!

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O com­pri­mento das cadeias

Essa texto não é meu. Fui apresentada a ele em uma das aulas do meu MBA em sustentabilidade e achei interessante compartilhar aqui, pois traz uma ótima reflexão sobre o comprimento das cadeias de abastecimento.
Enjoy it!



Paulo Brabo, 26 de novembro de 2015

O com­pri­mento das cadeias

Estocado em Manuscritos

A origem do fun­da­men­ta­lismo de mercado, sua base inte­lec­tual, é a noção de que não haverá jamais con­sequên­cias não cal­cu­la­das para as coisas porque, como em tudo se coloca um preço, você crê que está pagando por todas as con­sequên­cias das suas ações.
Sir Partha Dasgupta, How To Price a Forest and Other Eco­no­mics Problems
A sin­gu­la­ri­dade do modo de vida que tes­te­mu­nhei em Urubici no final da década de 1970 pode ser arti­cu­lada de diversas formas. A com­pa­ra­ção com Shangri-Lá de Hori­zonte Perdido pode ser ine­vi­tá­vel, porque um obser­va­dor entende de imediato que o caráter excep­ci­o­nal dos dois lugares – o vale da ficção e o da minha expe­ri­ên­cia – deve-se, em boa medida, ao seu relativo iso­la­mento.
Minha primeira e mais dura­doura impres­são sobre Urubici talvez tenha sido essa, a de que o lugar tinha sido poupado de alguma coisa que havia muito cla­ra­mente arrui­nado outros lugares; uma coisa que arrui­na­ria mesmo Urubici se encon­trasse ocasião de chegar até ali.
Um dos modos menos sen­ti­men­ta­lis­tas de arti­cu­lar a dife­rença é lembrar que a Urubici daquele tempo tinha sido poupada de um deter­mi­nado modelo econô­mico – um deter­mi­nado modo de ver e de perfazer o trajeto entre a produção e o consumo.
O Brasil da década de 1970 já operava com uma malha bastante complexa de produção e de dis­tri­bui­ção. Em con­traste, as cadeias de produção e de dis­tri­bui­ção em Urubici eram rela­ti­va­mente curtas.
Uma cadeia curta é quando você come o frango que criou, ou que comprou do seu vizinho. Uma cadeia longa é quando você come o frango que nasceu num cri­a­douro, foi engor­dado numa fazenda indus­trial, foi pro­ces­sado numa indús­tria e ficou arma­ze­nado em pelo menos um centro de dis­tri­bui­ção antes de ser posto à venda no seu super­mer­cado – sendo que cada uma dessas etapas ocorre, com toda a pro­ba­bi­li­dade, em lugares rela­ti­va­mente dis­tan­tes de você e uns dos outros.
Uma cadeia admis­si­vel­mente curta é quando um cidadão de Urubici veste uma camiseta que foi pro­du­zida em Blumenau. Uma cadeia longa é quando a camiseta que você veste tem uma etiqueta em inglês e foi pro­du­zida no con­ti­nente asiático.
O capi­ta­lismo, espe­ci­al­mente em sua mani­fes­ta­ção tecno-industrial, tende a produzir cadeias de produção e de dis­tri­bui­ção cada vez mais longas e com­ple­xas. Não é que o capi­ta­lismo dê por prin­cí­pio pre­fe­rên­cia a cadeias longas; são as ênfases capi­ta­lis­tas em pro­du­ti­vi­dade, espe­ci­a­li­za­ção e maxi­mi­za­ção dos lucros que acabam esti­mu­lando o alon­ga­mento das cadeias.
Sem nos darmos conta, patro­ci­na­mos cadeias de produção e de dis­tri­bui­ção que têm cada vez mais etapas, mais rami­fi­ca­ções, mais inter­me­diá­rios e mais depen­dên­cias. Nos casos de produtos de alta tec­no­lo­gia, essas cadeias acabam se des­do­brando em sistemas de uma com­ple­xi­dade bestial.
Um dis­po­si­tivo que teve o seu design esta­be­le­cido nos Estados Unidos têm os seus com­po­nen­tes pro­du­zi­dos em vinte países e três con­ti­nen­tes. Essa multidão de com­po­nen­tes mul­ti­na­ci­o­nais descobre modo de se reunir magi­ca­mente numa única fábrica da China, nas mãos de um único e anônimo ex-camponês, antes de atra­ves­sar mon­ta­nhas e mares e encon­trar o caminho de uma loja de shopping em São Paulo ou de um super­mer­cado de bairro em Campina Grande – tudo para que você tenha como jogar Candy Crush na sua próxima ida ao banheiro.

As pena­li­za­ções

À primeira vista as longas cadeias parecem não fazer outra coisa que premiar o con­su­mi­dor, porque efetuam a sua mágica de modo a pul­ve­ri­zar custos que a economia local não poderia ou não se disporia a cobrir. O resul­tado são preços menores para produtos que viajaram mais. Se quiser (e quem poderia resistir?) você pode pagar menos por um manteiga francesa, um peixe defumado cana­dense ou uma camiseta chinesa do que por produtos simi­la­res que foram manu­fa­tu­ra­dos a metros de você.
Natu­ral­mente esses milagres têm os seus custos, mas o sistema tem meca­nis­mos – a própria extensão das cadeias, a atração dos preços mais baixos – que tra­ba­lham para mantê-los ocultos.
Para entender os custos locais desse modelo econô­mico é preciso a dádiva de uma pers­pec­tiva que é cada vez mais rara. A mim essa pers­pec­tiva foi ofe­re­cida por Urubici naquelas minhas pri­mei­ras viagens a Santa Catarina.
Grande parte do que achei de admi­rá­vel no modo de vida do vale só era possível porque (e só per­ma­ne­ceu sendo possível enquanto) sua soci­e­dade não havia sido ainda seduzida e pena­li­zada pelo sistema de cadeias longas.
Permita-me examinar alguns aspectos dessas pena­li­za­ções.
► As longas cadeias minam a inde­pen­dên­cia e a auto­no­mia
Os uru­bi­ci­en­ses que conheci no fim da década de 1970 tinham um senso de auto­no­mia e de sufi­ci­ên­cia que chegava a inti­mi­dar. Não me lembro de ter tido medo de uma pessoa boa, um medo que era também uma espécie de admi­ra­ção, antes de conhecer aqueles homens e mulheres. Aquela era gente livre, como gente ide­al­mente deveria ser – e como eu não tinha visto ninguém na cidade con­se­guindo per­ma­ne­cer.
Meus amigos de Urubici tinham motivo para parecer livres e autô­no­mos: de fato eram. As cadeias curtas de produção e de dis­tri­bui­ção são brasões de auto­no­mia da soci­e­dade local, e nisso capa­ci­tam os seus habi­tan­tes em modos nume­ro­sos demais para contar.
São também parte essen­cial daquilo que se con­ven­ci­o­nou chamar de sus­ten­ta­bi­li­dade – o projeto de manter vivo e viável um deter­mi­nado modo de vida.
Seduzida pela aparente con­ve­ni­ên­cia das cadeias longas, a soci­e­dade perde de vista o que deveria parecer óbvio: que as cadeias longas tornam inviá­veis as cadeias locais.
O produtor local que perde seus com­pra­do­res perde não só o seu sustento: perde também a opor­tu­ni­dade de expor ao mundo, a si mesmo e a seus des­cen­den­tes a dig­ni­dade do seu modo de vida.
► As longas cadeias inibem a cultura local e tendem a riscá-la do mapa
Uma cultura local é um ecos­sis­tema de modos de fazer, um conjunto de feições dese­nhado pela história e pela geo­gra­fia. Tra­di­ções tornam-se tra­di­ções porque uma soci­e­dade decide cole­ti­va­mente, no espaço de gerações, que um deter­mi­nado conjunto de modos de fazer serve mais do que qualquer outra alter­na­tiva para representá-la diante de si mesma e distingui-la diante das outras.
Nenhuma soci­e­dade da história existiu com­ple­ta­mente isolada da influên­cia das outras, mas antes do nosso tempo nenhuma soci­e­dade teve que competir com uma cultura global.
A com­pe­ti­ção das longas cadeias de produção e de dis­tri­bui­ção invi­a­bi­liza a cultura local porque esta­be­lece como inviável o estrato mais fun­da­men­tal dos seus modos de fazer, aquele da sub­sis­tên­cia.
Quando no mercado local introduzem-se produtos sub­si­di­a­dos pelo com­pri­mento das suas cadeias, o pequeno produtor (ou o pequeno artesão) acaba enten­dendo que não pode con­ti­nuar sendo pequeno e produtor. Ele (ou pelo menos seus filhos) serão com­pe­li­dos a aban­do­nar os antigos modos de fazer. Via de regra darão ouvidos ao apelo uni­ver­sal para entrar no mercado, num cenário urbano ou pelo menos numa fábrica: querendo dizer, passarão a vender a sua mão de obra em vez da sua produção.
Serão empre­ga­dos.
É uma tran­si­ção tão radical que acaba dizi­mando no seu lastro todas as tra­di­ções e toda a cultura asso­ci­ada ao modo de vida anterior.
► As longas cadeias ocultam os custos locais das longas cadeias
Quando compra um artigo de 1,99 você via de regra não o faz por um ódio deli­be­rado à economia local. Na verdade, deter­mi­na­dos preços são tão excep­ci­o­nais que geram a impres­são de que ninguém está sendo pre­ju­di­cado por eles; parecem existir lite­ral­mente fora da com­pe­ti­ção.
O fato é que nada no planeta custa 1,99, a não ser que alguém fora do seu campo de visão esteja pagando a dife­rença. Essa trans­fe­rên­cia de custos é o meca­nismo mais essen­cial do sucesso das longas cadeias (ver abaixo), mas não é o único.
Quando a longa cadeia lhe oferece um produto a um preço muito inferior ao de um similar pro­du­zido local­mente, você se sente tentado a pensar que apenas os de fora estão sub­si­di­ando aquele preço.
A mate­má­tica, natu­ral­mente, é outra. Num sentido impor­tante, os produtos das longas cadeias são baratos porque não estão dando nada à economia local, exis­tindo à parte e sem qualquer com­pro­misso com ela. Via de regra, o custo das longas cadeias para a economia local é a economia local.
► As longas cadeias ocultam os custos globais das longas cadeias
Quando a produção é local, entra em ação um meca­nismo natural de con­ten­ção e de controle. Como a manu­fa­tura e o consumo acon­te­cem dentro das suas fron­tei­ras, a comu­ni­dade pode avaliar dire­ta­mente até que ponto os recursos locais estão sendo abusados, até que ponto a paisagem local está sendo des­ca­rac­te­ri­zada e até que ponto os tra­ba­lha­do­res locais estão sendo explo­ra­dos no processo.
As cadeias longas de produção ter­cei­ri­zam essas res­pon­sa­bi­li­da­des e ocultam cada um desses custos. Você compra o produto final, mas não tem como retraçar a partir dele as comu­ni­da­des que foram obli­te­ra­das pela nova hidre­lé­trica, as casas cen­te­ná­rias que foram aplai­na­das em esta­ci­o­na­men­tos, as espécies que foram desa­lo­ja­das ou extintas pelo avanço dos parques indus­tri­ais, os reti­ran­tes que foram arre­ba­nha­dos de seu modo de vida original a uma linha de produção con­fi­nada e insa­lu­bre.
Ter­cei­ri­zar res­pon­sa­bi­li­da­des rara­mente é uma boa ideia. Via de regra a extensão dos danos só aflora quando é tarde demais para corrigi-los – ocasião em que todos os envol­vi­dos poderão afirmar, sem mentir muito, que não tinham ideia clara do que estava acon­te­cendo.
Um exemplo do modo como as longas cadeias de produção e de dis­tri­bui­ção ocultam os custos globais que as sus­ten­tam é o caso da carne bovina.
Não é sem razão que na maior parte da história, em todas as geo­gra­fias, as pessoas comiam carne apenas oca­si­o­nal­mente, espe­ci­al­mente fresca. Criar um animal de corte requer con­si­de­ra­vel­mente mais recursos do que outras alter­na­ti­vas ali­men­ta­res. Com os 15.500 litros de água que são neces­sá­rios para produzir um quilo de carne bovina se produzem 12 quilos de trigo ou 118 quilos de cenoura.
O capi­ta­lismo se faz de louco e opera como se comer carne fosse algo natural como respirar ou beber água, mas a natureza opera de modo muito diverso. O que o sistema esconde é que é preciso queimar uma quan­ti­dade enorme de recursos para sus­ten­tar farsa tão esca­brosa.
Se é tão caro produzir carne, de onde um cara nada rico como você tira recursos para comê-la com tanta frequên­cia? O seu bife está sendo sub­si­di­ado, em parte pelo governo, em parte pelo planeta.
As longas cadeias mantém fora do seu campo de visão o acre de floresta amazô­nica que é der­ru­bado por segundo para dar lugar à criação de gado ou à produção de grãos des­ti­na­dos a ali­men­tar essa indús­tria. Um quilo de alcatra custa muito mais do que você poderia comprar, mas a extinção irre­ver­sí­vel das espécies e a obli­te­ra­ção sis­te­má­tica do pulmão do mundo têm feito a cortesia de pagar a dife­rença.
Grande parte do planeta está passando fome, mas para a sua con­ve­ni­ên­cia as longas cadeias ocultam que os recursos que sub­si­di­a­ram o seu chur­rasco poderiam ter sido empre­ga­dos para saciar uma pequena multidão. Você come o seu McLanche feliz sem ter de pesar que mais de 40% da produção global de soja, trigo, centeio, aveia e milho são usados para ali­men­tar não seres humanos, mas gado de corte.
► As longas cadeias ocultam os custos humanos das longas cadeias
Como estamos falando de sistemas com­ple­xos, com rami­fi­ca­ções em diversos con­ti­nen­tes, países e for­ne­ce­do­res, é por defi­ni­ção impos­sí­vel para o con­su­mi­dor acom­pa­nhar as even­tu­ais injus­ti­ças e atro­ci­da­des sociais patro­ci­na­das pelas longas cadeias do capi­ta­lismo ao longo do trajeto.
Você compra o seu smart­fone, mas não precisa ficar sabendo que as con­di­ções de trabalho em que ele foi montado numa fábrica chinesa são tão desu­ma­nas que as janelas são gra­de­a­das e os prédios providos de redes de segu­rança, na ten­ta­tiva de conter o avanço dos sui­cí­dios.
Você não precisa tes­te­mu­nhar o drama das famílias desa­lo­ja­das, das comu­ni­da­des e culturas riscadas do mapa, de gente em nada dife­rente de você roubada da sua dig­ni­dade.
Diminuir os custos e maxi­mi­zar os lucros é o mantra do capital. Os bate­do­res do capi­ta­lismo vivem sondando o planeta em busca da mão de obra mais barata dis­po­ní­vel, de modo a explorá-la nas suas longas cadeias.
Até recen­te­mente, por exemplo, a China era o grande centro de manu­fa­tura das roupas con­su­mi­das no ocidente. Esse eixo vem se trans­fe­rindo para Ban­gla­desh, onde as grifes encon­tra­ram mão de obra disposta a tra­ba­lhar por menos, com menos garan­tias e em con­di­ções de trabalho mais insa­lu­bres.
As grandes cor­po­ra­ções não mexem nesse tabu­leiro para perder. Elas não repassam para você um desconto que já não tenha sido pago por outro ser humano. A regra geral é esta: quanto menor o preço final de um produto de longa cadeia, mais brutais você pode concluir que foram as con­di­ções da sua manu­fa­tura.
► As longas cadeias separam o con­su­mi­dor do custo ver­da­deiro do que está con­su­mindo
“O capi­ta­lismo pre­da­tó­rio”, diz-me o ativista Robert David Steele, “baseia-se na pri­va­ti­za­ção do lucro e na exter­na­li­za­ção dos custos. Ele é uma extensão do con­fi­na­mento dos recursos comuns, das clau­su­ras, e é acom­pa­nhado pela cri­mi­na­li­za­ção dos direitos e costumes comuns que valiam ante­ri­or­mente”.
O que Steele chama de exter­na­li­za­ção dos custos é a própria essência da longa cadeia de produção e dis­tri­bui­ção. O capi­ta­lismo pre­da­tó­rio anda em derredor buscando recursos naturais e mão de obra baratos que possa tragar, não importa em que lugar do mundo.
Uma das con­sequên­cias desse modo operação é que ele aliena a soci­e­dade local do ver­da­deiro custo dos produtos que consome. Tendo sido exter­na­li­za­dos, os custos perderam toda relação com o preço final, e fica muito difícil estimá-los. Steele:
Pre­ci­sa­mos é de um sistema que preste contas inte­gral­mente de todos os custos. Por exemplo, meu colega J Z Lisz­ki­ewicz calculou que uma camiseta branca de algodão encerra cerca de 570 galões de água e entre 11 e 29 galões de com­bus­tí­vel, bem como um bom número de emissões e toxinas, incluindo pes­ti­ci­das, vapores de diesel, metais pesados e outros com­pos­tos voláteis – e comu­mente envolve ainda trabalho infantil. Pesar esses custos e seu impacto social, humano e ambi­en­tal tem impli­ca­ções para o modo como devemos orga­ni­zar a produção e o consumo que diferem em muito do presente capi­ta­lismo pre­da­tó­rio.
► As longas cadeias roubam a pers­pec­tiva – do que está acon­te­cendo e do que pode ser feito
Como resul­tado do men­ci­o­nado acima, todas as partes envol­vi­das são roubadas de pers­pec­tiva: uma visão clara e global das con­sequên­cias do que estão fazendo.
As soci­e­da­des locais por certo não têm essa pers­pec­tiva. O sistema colocou-as num ponto cego, e espera-se que se bene­fi­ciem pas­si­va­mente do sistema de longas cadeias sem ter que entender o que envolvem. A única atitude não-passiva da soci­e­dade local deve ser sua con­tri­bui­ção ativa para a manu­ten­ção de outras longas cadeias – con­tri­bui­ção de cujos custos as demais soci­e­da­des per­ma­ne­ce­rão igno­ran­tes, e assim por diante.
Os governos e cor­po­ra­ções por certo não têm essa pers­pec­tiva. Sua eficácia como ins­ti­tui­ções depende de igno­ra­rem e passarem por cima dos preços pagos pelas soci­e­da­des locais para o avanço de sua “causa maior”. Quando toda a Amazônia for um esta­ci­o­na­mento estarão ainda recusando-se a admitir que alguma coisa foi perdida.
Num sistema em que ninguém sabe exa­ta­mente o que está acon­te­cendo, em que ninguém sabe o ver­da­deiro custo de nada (quem pode ver­da­dei­ra­mente estimar o custo de um acre de mata der­ru­bado por segundo?), ninguém se sente res­pon­sá­vel e ninguém será chamado a prestar contas, a não ser que todos sejam.
Sistemas com­ple­xos sem espaço para res­pon­sa­bi­li­dade e pres­ta­ção de contas são um convite ao desastre. O desastre não é conhe­cido por recusar convites dessa natureza.
► As longas cadeias se tornam cadeias: o capi­ta­lismo é um sistema do qual ninguém consegue sair
Na Urubici do final da década de 1970, com seu regime de cadeias curtas, meus amigos conhe­ciam uma liber­dade que nos nossos dias tornou-se pra­ti­ca­mente impos­sí­vel de exercer.
Aqueles caras extraíam o seu sustento da terra (e pare um minuto para sentir quão século XIII soa essa ideia lida na telinha do seu smart­fone). Não arren­da­vam a sua força de trabalho para ter­cei­ros, mas empregavam-na para si mesmos. Não eram de modo algum soci­a­lis­tas, mas sub­sis­tiam à parte do mercado.
E, das into­le­rân­cias do fun­da­men­ta­lismo de mercado, esta é a primeira: o capi­ta­lismo não tolera que alguma coisa exista à parte do mercado. À parte do mercado ninguém deve ter per­mis­são para sentir que existe.
O capi­ta­lismo cor­po­ra­tista apropriou-se e reo­ri­en­tou todos os aspectos da cultura de modo a reforçar esse único dogma. É por isso que os filhos de meus amigos de Urubici trocaram aquele modo de vida por modos urbanos em outras cidades: para entrarem no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe. É por isso que mandamos as crianças para a escola; não para que aprendam alguma coisa, mas para que aprendam a entrar no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe. É por isso que as pessoas escrevem livros e pintam quadros, não para dizer alguma coisa ou para a glória da aventura humana, mas para vendê-los no mercado – porque quem não está no mercado não deve sentir que existe.
É por isso que neste mundo quem acontece de estar desem­pre­gado é com­pe­lido a sentir-se, de modo muito real, menos do que gente. A própria palavra faz questão de demarcá-lo. No regime capi­ta­lista um desem­pre­gado (que é, em termos estritos, uma pessoa livre) deve sentir que não tem emprego: não tem uti­li­dade, não tem dig­ni­dade, não tem lugar, não tem valor.
Se existe ide­o­lo­gia mais perversa, ou sistema mais efi­ci­ente de mani­pu­la­ção, esses não acabarão subs­ti­tuindo o capi­ta­lismo. O capi­ta­lismo é que se mostrará pronto a incorporá-los.

Este relato foi postado na Forja Uni­ver­sal em 6 de julho de 2014